Marlyana Tavares (atualizado em 15/02/2023) – No barco “ancorado” sobre um penhasco e voltado para o oceano, o poeta chileno Pablo Neruda brindava com os amigos e jogava versos ao vento que soprava em Isla Negra. O local foi seu último refúgio. E hoje, no dia 15/02/2023, a imprensa noticia que Neruda não morreu pelo câncer que o acossou, mas sim por envenenamento. Com esta descoberta, visitar Isla Negra, uma das três casas do poeta, no Chile, e de onde saiu para ser internado, reveste-se de um simbolismo ainda maior.

Um dos poetas mais lidos, traduzidos e amados do mundo, Neruda deixou Isla Negra entristecido com a deposição e assassinato do amigo Allende pela ditadura de Pinochet, duas semanas antes. 

Visitar Isla Negra não é um passeio tão comum de se fazer nos arredores de Santiago, como Valparaíso, Viña del Mar ou as estações de esqui. Mas para quem gosta de história, museus, literatura e natureza, vale a pena. Saiba como fazer para chegar até lá e o que vai encontrar.

Isla Negra, como as outras duas casas,  La Sebastiana, em Valparaíso e La Chascona, em Santiago, era a casa que o Prêmio Nobel de Literatura mais amava.

As três cmoradias, invadidas e bastante danificadas pelos adeptos do regime de ferro, são hoje museus e administradas pela Fundação Pablo Neruda. 

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Como chegar a Isla Negra

Para chegar a Isla Negra (Poeta Neruda, s/n, Isla Negra, El Quisco) você pode contratar um passeio em uma agência local (pergunte em seu hotel ou hostel), ir de ônibus ou alugar um carro. A entrada custa 7 mil pesos/pessoa. Consulte o site da Fundação Neruda para saber preços e horários de atendimento.

De ônibus, a empresa Pullman Bus faz o trajeto até o local a partir do Terminal de Buses Alameda de Santiago.  Isla Negra fica 1h30 de Santiago, em direção ao Sul, pela autopista del Sol, numa viagem bastante agradável. 

Audioguias

A visita conta com sistema de audioguias em várias línguas, entre elas português. As visitas são feitas de meia em meia hora, e segundo o site da Fundação Neruda, que administra as três casas-museu de Pablo Neruda, não é preciso fazer reserva: a entrada é feita por ordem de chegada. Também é fornecido um mapa, que ajuda bastante a identificar cada lugar da casa.

Fomos em um dia de semana, então estava tudo bem tranquilo, quase vazio. Se puderem, aconselho a fazer o mesmo.

Fotos abaixo: vista do lado de fora do bar onde o poeta guardou sua coleção de garrafas de cristal recolhida em várias partes do mundo e um dos escritórios com a mesa onde Neruda fitava o mar, como inspiração para seus escritos.

Capitão em terra firme

Jardim, mulher olhando o mar e a casa ao fundo

Neruda tinha medo do mar. De seu terreno ele mirava o Pacífico em segurança (Marlyana Tavares)

Acredito que as casas guardam a energia de quem nelas morou. Por isso, quando vi numa programação de roteiros, durante uma viagem a Santiago, a opção de um bate-volta até a Casa Museo Isla Negra, não tive dúvidas. 

Logo ao chegar, confirmei minha intuição. O lugar conserva mesmo a energia do escritor e de sua terceira e amada esposa Matilde Urrutia.  

O visual de Isla Negra já vale a visita. Pena que no dia de em que fomos o tempo estava cinza e frio, por isso as fotos pálidas.A casa fica no alto de um penhasco sobre o Oceano Pacífico.

A residência acabou de ser construída em 1945. Onde antes havia apenas uma cabana, foi se erguendo uma construção em forma de um navio.

Na parte externa o tal barco onde o poeta recebia os amigos para um vinho (ele só admitia tomar os chilenos). Neruda adorava o mar, mas tinha medo de água.

Ele se imaginava dentro de uma embarcação ao olhar das janelas da casa para o oceano. Dizia que era um “capitão em terra firme”.

Adorador de coleções

O poeta adorava colecionar de tudo e isso está presente em suas três casas. Em Isla Negra, as mais importantes coleções estão ligadas ao mar. São mais de 600 conchas e caracóis, esculturas de proas de navios, réplicas de barcos dentro de garrafas (dadas pelo amigo Jorge Amado), dentes de cachalotes. No total, mais de 3,5 mil objetos de várias partes do mundo.

Na sala de estar há impressionantes imagens de anjos de proa de navios posicionadas olhando o mar.

Na Sala del Caballo, reina um cavalo em tamanho natural feito em papel marchê e todo ornamentado. Em certos momentos, a gente sente que está andando dentro de um navio, em corredores que se abrem em salões.

Prêmio Nobel – Estar ali foi adentrar no universo de um dos poetas mais lidos, traduzidos e amados do mundo e dos chilenos. Ele publicou 49 livros, muitos deles reeditados em outros países e traduzidos em 35 idiomas.

Nascido em 12 de julho de 1904 em Parral, Temuco, Neruda tem uma história de vida muito rica, tanto literária quanto política. 

O Prêmio Nobel de Literatura recebeu muita gente nessa casa. Foi aí que escreveu a maioria de seus livros e isso transparece na atmosfera do lugar. Na cabaninha de madeira do lado de fora da casa ele escreveu grande parte de Canto Geral, uma de suas principais obras.

Mesa com cadeiras e o mar ao fundo em Isla Negra

Mesa com o tampo “ofertado” pelo mar (Marlyana Tavares)

Dentro da residência há um outro escritório onde também traçava seus poemas numa grande mesa de madeira cujo tampo foi trazido pelas ondas do mar.

Assim o poeta relatou:  “O Oceano Pacífico saía do mapa. Não havia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso, o deixaram em frente à minha janela.”

O desafio da locomotiva 

Locomotiva parada em frente a casa em Isla Negra

Peça de decoração foi trazida de muito longe (Marlyana Tavares)

Um dos destaques da parte de fora da casa é uma locomotiva. A história é curiosa. Pablo Neruda e sua mulher, Matilde, saíam muitas vezes para comprar materiais e utensílios para a casa de Isla Negra e, numa destas vezes, viram uma pequena locomotiva usada numa serraria, a cerca de 10 quilômetros de distância.

A serraria iria encerrar suas atividades e Pablo, apaixonado pela locomotiva, comprou a engenhoca bem barato. O problema era como levá-la até a casa. Até que um grupo de amigos o fez enquanto o casal estava de viagem.

Foram necessários vários bois e jipes, muita boa vontade de vencer as dificuldades do caminho, mas eles conseguiram. Quando Pablo e Matilde regressaram lá estava “el locomóvil”.  A história é contada por Matilde em seu livro Mi Vida Junto a Pablo Neruda, uma preciosidade que comprei no aeroporto de volta para casa.

Enterrem-me em frente ao mar!

Túmulo de Pablo Neruda e Matilde Urrutia em isla Negra

Túmulo de Pablo Neruda e Matilde Urrutia (Marlyana Tavares)

Neruda e Matilde sofreram muito com o golpe militar. Suas casas foram arrasadas. Matilde conta que, na época do golpe, o marido tinha um câncer  e estava muito doente em Isla Negra. Amigos vieram lhe trazer a notícia da deposição de Allende. Arrasado com a notícia, Neruda foi levado para o hospital em Santiago onde morreria, em 23 de setembro de 1973.

Escreveu Neruda, no poema Disposiciones, de Canto Geral: “ Companheiros, enterrem-me em Isla Negra/ em frente ao mar que conheço a cada área rugosa de pedras/e de ondas que meus olhos perdidos não voltarão a ver“.  

A vontade do poeta  só seria cumprida 19 anos depois de sua morte. Os corpos do poeta e sua musa, Matilde, estão enterrados em frente ao mar.

Museu

Na lojinha do museu há livros e suvenires que vale a pena trazer na mala. Na minha veio Veinte Poemas de Amor e Una Canción Desesperada, simplesmente a 92ª edição do segundo livro feito pelo poeta, então com 20 anos.

Pomaire

Potes escuros de cerâmica

Potes e enfeites de cerâmica vermelha: especialidade local (Marlyana Tavares)

Pastel de milho

Pastel de choclo, iguaria típica (Marlyana Tavares)

Na volta para Santiago, já a 73 quilômetros de Isla Negra/El Quisco e a 50 da capital, paramos para visitar a pequena Pomaire. Foi uma boa surpresa. É um centro de produção de cerâmica artesanal vermelha, feita com argila retirada nas colinas próximas ao vilarejo.

Paramos em rua comprida, com alguns restaurantes e várias lojas enfileiradas, abarrotadas de tudo quanto há feito com essa cerâmica. No almoço, experimentamos o pastel de choclo, uma iguaria típica feita com milho e recheio de carne, uma delícia.